.comment-link {margin-left:.6em;}

Thursday, July 12, 2012

 

Texto do meu irmão Bicó

Praticamente o que ele falou na cerimônia de cremação.
Foi bonito.

                                    Mensagem da Lizabel

É difícil e fácil, ao mesmo tempo, falar desta mãe que acaba de partir. A dificuldade dispensa maiores explicações: desde ontem ao meio dia e meia, ela nos deixou, a mim e aos meus irmãos, literalmente, sem pai nem mãe...Foi-se nosso primeiro e último esteio moral, a referência mais antiga, quase onipresente, a fonte de nossos afetos, a memória da família. A presença das horas decisivas – boas e más – começa a se tornar ausência, enorme e irreparável. Espera-nos uma dura saudade, atenuada, quem sabe, ao longo da vida, pela obra inexorável do tempo – o mesmo que agora, justamente, veio terminar de roubá-la de nós, filhos, sobrinhos, parentes, amigos de toda a vida.
Por outro lado (e isto já serve de consolo), é fácil falar da Lizabel, de suas tantas qualidades, como pessoa, companheira, mãe, tia, amiga e cidadã. Foi a companheira sempre presente de um homem extraordinário – e difícil. Mas foi, ela mesma, uma mulher extraordinária, na sua coragem, na sua firmeza de caráter (e também na sua firmeza ideológica), na dedicação aos seus – e, sobretudo nisso, na sua capacidade de afeto, afeto silencioso e discreto, suave e modesto.
  Cultivava de forma quase obsessiva a discrição, virtude que vai ficando tão rara, neste mundo do espetáculo em que terminou seus dias. E a humildade, que ela e o pai nos ensinaram que não é incompatível, antes completa o orgulho, o justo orgulho que tinha – de sua condição de mulher, de filha desta terra, de socialista, de humanista crente no destino do homem, na beleza da natureza e da arte, sobretudo da literatura e da música, que tanto amava. Afinal, como dito na copla recolhida no planalto de Córdoba pelo Atapualpa Yupanqui (que ela e o pai nos ensinaram a venerar), “soy humilde y orgulloso, pido y espero respeto; arriba de mi, mi sombrero, abajo de mi, mi caballo...”.
Foi inexcedível nesta virtude, básica e simples, do afeto e do humanismo, que a acompanhou até o fim; na dedicada atenção aos mais humildes, em que reconhecia sua própria origem de mulher filha desta terra, terra fundada por gente simples e rude –, ela própria, uma destas tantas “maravilhosas mulheres do Rio Grande” a que seu marido não cansava de se referir em seus melhores discursos, aqueles pronunciados entre os amigos, e que o Érico Veríssimo (de quem ela tanto gostava, como me lembrou ainda há poucos dias) imortalizou nas figuras de Ana Terra e Bibiana.
Realizou ainda jovenzinha o sonho de ser descoberta, lá naquela Santiago do Boqueirão dos anos 40 do século passado, nos anos intensos e incertos da Grande Guerra, pelo jovem tenente oriundo da misteriosa Vacaria, orador e sedutor – sobretudo isso, um sedutor, mais que pelo garbo militar e a estampa de galã de época, pelo encanto da palavra, a palavra que evocava o sonho de um mundo novo, a igualdade e a fraternidade entre os homens, o socialismo que traria justiça, e a paz como condição para a construção do futuro.
  Tiveram vida plena, partilharam desejos e necessidades, criaram os filhos e fizeram amigos, enfrentando juntos ansiedades e medos, em tempos difíceis e maravilhosos: ao longo dos tormentosos anos 50 e 60, viveram intensamente o começo da guerra fria e a campanha da paz; o segundo governo e o suicídio de Vargas, e os anos de Juscelino (tão promissores e marcantes, no anúncio do modernismo redentor do país atrasado); o refluxo angustiante do golpe militar, e as duas décadas duríssimas que se seguiram, nas quais o trabalho dele salvou a liberdade e a vida de tantos companheiros, velhos e jovens, e manteve viva a esperança de tantas famílias –, trabalho que não poderia fazer sem o apoio firme e silencioso da companheira incansável.  
Ela foi, por fim, cumulada pela suprema virtude de morrer tendo deixado, vivos e saudáveis, os filhos (os dela e as sobrinhas de quem foi a segunda mãe) e os netos –, o que compensou algumas duras perdas recentes, de queridos amigos e, em especial, de dois sobrinhos muito especiais, mortes que nunca aceitou.
Suprema ironia: esta mulher, que deu e inspirou vida a seu redor, por mais de oito décadas, morreu por falta de ar, condição elementar de vida...E teremos como consolo, nós, os que hoje a pranteamos, e que a haveremos de lembrar sempre, a permanência da crença que a animava – atéia que era –, a crença na humanidade que é capaz de criar beleza e construir coletivamente, para todos e para cada um, ao menos por um dia, a felicidade comum que ela pôde viver em tantos momentos de sua rica vida.   
        
P. Alegre, 03 de setembro de 2.012.



This page is powered by Blogger. Isn't yours?